terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Futuro

Uma inequação de grau superlativo

Neste atual momento, quando os poderosos da Terra, as grandes empresas, os aparelhos estatais, a Organização das Nações Unidas, em suma: o “establishment” se afirma preocupado com a sobrevivência do planeta, o aquecimento global e o meio ambiente de modo geral, é preciso que se diga uma coisa: nada de fundamental irá ocorrer enquanto não acontecer uma mudança radical do próprio modelo de homem, e mulher, que vem se reproduzindo desde o início dos tempos ditos modernos.

É preciso entender que os desequilíbrios do meio ambiente são conseqüência do individualismo, do estilo de vida decorrente e da competitividade que está no cerne do mundo que nasceu basicamente comercialista e tornou-se industrialista, em suma: o sistema capitalista.

Em um mundo de competição não há como parar o avanço sobre os recursos naturais, toda empresa e toda nação, tem como meta o crescimento, mas o planeta não comporta mais tanto crescimento. Esta é uma equação simples, ou melhor, uma inequação. E nesse ambiente de depredação geral, se não houver uma mudança de rumos, certamente a humanidade se arrisca à extinção.

Precisamos mudar, mas como? Se nos vemos envolvidos em um círculo vicioso: O sistema é competitivo, assim desde criança alguém aprende o individualismo agressivo para sobreviver à violência e a competição, e tudo se repete.

Será preciso romper este eterno retorno da violência , do medo e da agressividade disseminada. Precisamos compreender que é o modelo de ser humano que sustenta o sistema econômico, daí que serão vãos os esforços para proteger o planeta se não mudarmos o modelo de ser humano atual. Trata-se de mudar a perspectiva, do individualismo agressivo para um mundo de cooperação. Em vez da ansiedade e o desejo de sempre crescer, o aperfeiçoamento e harmonização do que já existe.

Resolvemos dar uma contribuição refletindo sobre o assunto. Acreditamos que primeiro precisamos de um diagnóstico correto da situação. Nesse sentido estamos lançando o livro “ O futuro já se demora demais”, projetado para ser o primeiro volume de uma trilogia. Veja ao lado (clique), o sumário, o projeto de capa e o primeiro capítulo: matéria viva.

Proposta

Proposta editorial alternativa

O livro” O futuro já se demora demais” está disponível (por meio eletrônico) mas espero que entre os leitores alguém se disponha a adquirir o livro impresso, o que irá viabilizar a sua edição. Pois acredito que nada supera o livro como veículo de textos longos, (senhores programadores, está na hora de nos darem uma tela fosca e branca como o melhor papel) E ainda assim não será suficiente. Amante dos livros que sou, acredito que ainda vai demorar muito para obtermos um sucedâneo eletrônico para o livro. Pois como substituir as facilidades que ele nos proporciona? Podemos levá-lo para os mais diversos lugares ---- onde se dispõe ou não, de energia elétrica; a leveza que nos permite segurá-lo com uma mão apenas, sentados, deitados; a facilidade e rapidez como mudamos de página, a nitidez da letra, etc..

Por esta razão proponho a invenção de uma editora virtual, na qual pessoas distantes entre si poderão participar. Uns como leitores, outros como revisores de texto (eu posso), criadores de arte, do projeto gráfico, autores. Por pensar assim é que me disponho a convidar a quem queira, a participar da edição de “ O futuro já se demora demais” Aqui temos o primeiro capítulo, quem desejar ler o restante contate ajoaoguimaraes@gmail.com , a todos disponibilizarei o texto, somente quem desejar pode se comprometer a comprar um exemplar. (somente irá pagar no momento de receber) O valor será decidido de acordo com a quantidade de leitores dispostos a adquirir o livro, versus os custos. Também aceito entabular conversações para implementar a editora virtual. Ou algum outro projeto nesta área. De qualquer modo, seja qual for o seu perfil, aguardo sua mensagem.

sumário

FUTURO JÁ SE DEMORA DEMAIS

SUMÁRIO

ORIGEM

MATÉRIA VIVA 05

Vegetais 17

Animais 19

Vontade natural 26

GENEALOGIA DA ALMA 39

Genes 41

Pensamentos 51

Sístole 57

Diástole 68

Fênix 71

PASSADO

A FORMAÇÃO DO AMBIENTE MENTAL 83

Homens 95

Mulheres 98

A dupla face do poder 101

O guerreiro 108

O sacerdote 112

Totalitarismo 119

A INDECIFRÁVEL POTÊNCIA DA GRAÇA 129

Outro olhar 133

Senso comum 137

A graça 143

Gerações 146

O simulacro 154

Decadência 160

Poetas 170

A RUPTURA NO AMBIENTE MENTAL 176

Ruptura 193

A reação 200

E renasce a alma do caçador 214

PRESENTE

A BALSA 226

Ego 233

Alter 233

Desconhecimento 248

Mente madura 257

FUTURO

O JARDIM 265

Uma tribo pós-moderna

Este texto foi baseado em anotações que fazem parte do projetado terceiro volume da trilogia

Uma tribo pós-moderna

Tomemos aleatoriamente uma afirmação do autor , Paul Karlson, quando tenta nos explicar o fundamento dos números complexos, ou bi-dimensionais: Paul Karlson, A magia dos números, Editora Globo, Porto Alegre, RS. Página 591

“Os pares numéricos derivam dos números antigos, e podem, mediante uma escolha adequada, uma restrição, reduzir-se novamente aos números unidimensionais, da mesma maneira que um circunspecto pai de família, encontrando por acaso os antigos companheiros da mocidade, pode voltar a portar-se “como nos tempos idos””.

Karlson trata de matemática, mas não vamos seguí-lo nesta direção, e sim nesta outra, em que ele graceja quanto ao desejo de alguém em sentir-se jovem. Passa por nossa cabeça a insatisfação com uma certa inconseqüência do autor, já que não se concebe que sendo a juventude algo extremamente agradável a todos, se possa abandonar este estilo de ser, deliberadamente, simplesmente em razão de uma convenção social que assim exige.

A brincadeira de Paul Karlson nos lembra o filme, “Husbands” de John Cassavetes, diretor que se tornou conhecido por uma espécie de dissidência com respeito a Hollywood, sendo ali o mais comum o trabalho em equipe, submetida a um certo direcionamento comercial quanto à a feitura dos filmes, enquanto ele fazia filmes de autor, como os grandes mestres, do auge do cinema.

Neste filme Cassavetes apresenta um grupo de amigos, do tempo da escola. E que se reencontram e tentam, sem o conseguir, refazer os programas e as atitudes de quando todos eram jovens. E agora, casados estão apáticos e sentimentais, mas tudo isto apenas para falar de uma certa preguiça, que nos faz acomodar e deixar que a rotina nos domine. Aparece claramente uma crítica ao modelo de vida atual. Principalmente à família, mostrada como uma prisão para o homem.

Enfoca a submissão a costumes que não se critica adequadamente. E é assim que estes amigos que se encontram, já quando adultos, merecem sim os gracejos do mestre da matemática. Mostram-se alquebrados, amargurados, todos comprometidos com os mais diversos afazeres, não possuem a liberdade, não se arriscam, geralmente estão gordos pela inatividade gerada por rotinas massacrantes.

O fato é que aceitamos uma convenção que nos retira a juventude. E se alguém disser que a juventude é algo derivado da natureza e está condicionada pelo tempo, vê-se imediatamente que não é assim. Ela é muito mais resultado de convenções, restringida por costumes, por uma tradição apenas. Como no exemplo acima, vê-se que há sempre o desejo de retomar a juventude, mesmo que seja apenas em um final de semana com os amigos. O que era próprio da juventude? A fraternidade, o descompromisso, a alegria de viver. E isto não necessariamente deveria desaparecer nas outras faixas etárias.

Portanto a felicidade não é uma questão de idade. A pessoa não só quer expressar-se livremente, mas ver reconhecida a sua expressão, lança-se com o seu desejo na direção do outro e tem prazer se recebe atenção e compreensão. Se há comunicação genuína, aí tudo se aquieta e está completa a relação. Este , talvez, seja o principal prazer de viver. Mesmo se entre amigos, se entre amantes, entre pais e filhos, dentro de um círculo não muito extenso das pessoas entre as quais se vive, ou mesmo entre estranhos, pois, muitas vezes é aí que acontece um dos prazeres mais significativos, este de encontrar um desconhecido pelo qual se sente simpatia. Prazer em conhecer.

É preciso ver que os empecilhos a uma vida plena são estruturais. O modelo atual, com a família centralizando essa função de conceder o reconhecimento, de providenciar o aconchego espiritual que alguém requer ao adentrar a existência, reduz, de modo fundamental, o círculo afetivo da pessoa. O modelo familial tradicional foi destruído com a urbanização. O que prevalece no momento sustenta-se na família nuclear, o casal. Isto conduz a uma identidade que se forma quase que exclusivamente do contato com os pais, resultando em uma afetividade centrípeta, presa ao âmbito restrito da vida do casal. Este modelo favorece o individualismo. A pessoa se coloca contra o mundo. Competitivo, agressivo. O individualismo está na raiz de todo o desencontro sócio-cultural da atualidade.

Quanto à distribuição de afeto, as aldeias, ou mesmo as pequenas cidades, ainda mostram a prevalência de uma maior identificação entre os seus habitantes. Mas nas grandes cidades instaura-se outro sistema de distribuição de afetos. O grau de comunicação submete-se a uma formalização, a maior formalização permite maior controle para realizar a cerimônia social mas isto se mostra falho. Assim é que paradoxalmente quanto mais verbalização pode acontecer menor grau de entendimento. Realizam-se muitos contatos, supondo-se que mais superficiais, resulta em baixo nível de comunicação. A já citada multidão solitária. (The lonely crowd, David Riesman, 1950)

O mundo, dito moderno, é principalmente um mundo urbano. Prevalecem as normas formais de relacionamento. As pessoas podem trocar cumprimentos, trocam signos, se comunicam racionalmente mas para trocar afetos organizam-se segundo normas próprias do meio urbano. O difícil relacionamento de desconhecidos somente ocorre por meio de uma mais complexa formalização dos modos de conduta. Ao menor aprofundamento interpessoal supre-se com uma maior complexidade das convenções.

Queremos pensar a alternativa de vivermos uma outra experiência. Poderíamos projetar um sistema onde a célula básica seria formada por uma `família` múltipla. Com diversos amigos morando em condomínios (Diversas casas ou prédios de apartamentos, com as construções planejadas para o novo estilo de convivência comum.) Isto possibilitaria unificar despesas, facilitar logísticas voltadas para alimentação, o transporte pessoal, compras, e muitas outras oportunidades. E, principalmente, facilitaria a introdução desse outro sistema familiar. Onde os filhos seriam criados em comum. Uma espécie de tribo integrada ao meio urbano.

Neste novo modelo de sociedade a pessoa já irá nascer no ambiente social. Não apenas se identifica com os pais, mas com todos os parentes e até mesmo com aqueles que não fazem parte da sua família. Um novo modelo tribal de existir. Mas não se trata de retorno, mas avançar a um modelo que nunca foi tentado antes.

O coração desse sistema teria que ser um conselho, onde as decisões seriam tomadas de modo coletivo. Ele administraria um fundo destinado a prover todas as despesas. Uma garantia de que todas as providências sejam cumpridas. Por exemplo: Que as crianças recebam assistência, mesmo não estando presentes os pais biológicos.

O principal objetivo será abrir os círculos afetivos, sob os quais se forma uma pessoa, rompendo com o casamento monogâmico como central nessa função. Sem que se deixe perder a eficácia operacional que este tem apresentado, (mal ou bem tem sido o sistema usado até hoje). A mudança somente tem sentido se significar aperfeiçoamento ainda maior em eficácia. A educação das crianças poderá ser excelente, desde que se desenvolva um sistema funcional para a convivência entre muitos irmãos.

Um previsível avanço existencial, se passássemos a ver que em verdade alguém cresceria enormemente em sua concepção do que significa o ambiente social. Onde cada um se olharia como parte do coletivo, considerar a si mesmo como pai, ou irmão, mãe, etc., de toda criança que necessita de assistência. Este seria o modelo de homem que cresceu afetivamente, o homem que pode ser amante de muitas mulheres. Porque ele consegue conviver com mulheres que também vão amar muitos homens. (O que significa uma profunda mudança no caráter afetivo do sujeito).

É preciso deixar claro que não se busca a orgia. Toda vez que se fala em liberdade sexual se pensa imediatamente em desregramentos e coisas afins. Acreditamos que o pudor é um sentimento natural, e cada um saberá definir o que deseja, mesmo que não lhe sejam cobradas as restrições, quem o faz é a própria pessoa madura. Ter a liberdade para buscar o equilíbrio que existe em ser livre, não para nos perdermos com relacionamentos inconseqüentes, o desejo sim, mas o respeito às pessoas, a seu intelecto e preferências pessoais. Isto é o que um homem e uma mulher livres podem esperar um do outro. Só há esta possibilidade se acontecer algum grau de amadurecimento cultural.

Os tropeços provocados pela exaltação dos movimentos feministas e a chamada revolução sexual acontecida entre 60 e os 70s, necessariamente devem ter trazido alguma experiência. Será possível saber onde se errou. Mas principalmente constatar que não dá para recuar ao que havia antes. Ao casamento monogâmico. É preciso escapar desse lugar fechado que é o casal. Fechado como se dois intrigantes, o machismo de um alguém , secundado por sua posse, a mulher, os dois contra o mundo, e os filhos sofrendo o medo do mundo que vem desse isolamento dos pais. No fundo o casal se esconde do mundo. Um modelo próprio de um tempo quando o sexo ainda era visto com muitas restrições e proibições.

Não seriam descartados totalmente os casamentos monogâmicos. Mas, embora este modelo também possa ser usado, a vanguarda seria oferecer a vida de solteiro sexual, a homens e mulheres que embora venham a possuir filhos, disporão de condições excelentes para criá-los, sem abrir mão da condição de liberdade. E a despeito das necessárias responsabilidades, manterem-se como pessoas livres, do ponto de vista dos seus relacionamentos sentimentais e sexuais. Haveria mais energia circulando em um meio que siga este modelo de relações afetivas. Entre o afetivo e o social não iria existir uma defasagem.

Nem também se pretende impedir a privacidade (Cada adulto teria o seu apartamento particular, suas coisas particulares. E quanto a aquela afinidade, entre homem e mulher, a que se acontece mostra-se perfeita, isto que se convencionou chamar amor. Até aí, nenhuma culpa. Estão assim concentrados, alheados, por que subiram ao céu. Mas um casal assim poderá conviver tranquilamente em qualquer sociedade. Nem seria preciso dizer o obvio, que não pode haver dogmas, como este de se obrigar alguém a mais de um parceiro sexual. Qualquer preferência tem que ser respeitada. E o que se pretende projeto de aperfeiçoamento de costumes, não admitiria atitudes autoritárias. É com o conhecimento entre si que se forma a tribo, espera-se que todos saibam com quem estão lidando.

Cada tribo irá elaborar as regras para que alguém seja incorporado, ou eventualmente, também excluído. Muitas perguntas irão surgir com certeza. Como lidar com os afetos provenientes do ambiente externo à tribo. Com certeza muitas outras questões terão de ser pensadas, e tudo equacionado.

As crianças sempre teriam a assistência de pais, os seus próprios, ou os adotivos, presentes sempre, mas se admitiria a contratação de serviço especializado em casos especiais. O ideal é que a tribo se forme antes de construir a moradia.

Pense nas mudanças quanto à construção das novas moradias, onde se teria de prever espaços adequados para creche, biblioteca, salas de jogos e outros ambientes de uso coletivo, a serem definidos por cada tribo.

Do ponto de vista econômico basta uma comparação imediata para se perceber as vantagens: quantos fogões serão eliminados em favor de um cozinha e refeitório de uso comum. Quantas máquinas de lavar seriam transformadas numa lavanderia única, televisores se agrupam em salas multimídia de uso comum? O benefício em termos de utilização dos espaços, a economia direta com um sistema de compras e de transportes unificado.

Nem é preciso dizer da adequação dessas idéias a um mundo que certamente vai ter que encontrar meios de reduzir o desperdício. O futuro exige algo assim. Mas o ganho capital seria o significado em termos de troca afetiva.

Os novos seres ao virem para a existência não mais se voltariam para se identificar com o pai, ou a mãe, para formar, juntos, o casulo individualista. Agora o ser é convidado a se abrir para o mundo. Nasce já no interior da sociedade. Os afetos que consolidarão o grau de felicidade de uma geração serão a garantia de solidez dessa nova sociedade.

Desde os primeiros relacionamentos de amizade ou namoro que os jovens poderiam começar a idealizar a sua tribo, convidando os que são simpáticos , reunindo-se e discutindo vida em comum. Ao final dos estudos, quando normalmente os jovens irão deixar os pais, ele já estaria incorporado a uma tribo. As escolas iriam auxiliar nesse sentido. Naturalmente os jovens já demonstram uma tendência semelhante. Realizando experiências fazendo viagens juntos, organizando finanças do grupo, fiscalizando as ações e definindo regras para discussão dos problemas. Não mais de modo egocêntrico como noivo e noiva faziam e fazem ainda ao planejar a sua vida.

Cada tribo prepararia seus filhos para construírem a sua própria comunidade, desde cedo. Incentivariam discussões de como seria a nova tribo, a poupança de recursos, e mais do que isto, todos os passos no sentido a modificar a vida, e conseguir mais felicidade pessoal, mais significados, mais afeto.

A maior importância, o que há de mais central, seria a nova perspectiva que tudo isto provocaria. Alguém já vai nascer no ambiente social. Possivelmente no futuro todos irão nascer no ambiente social, a privacidade será um assunto particular, de homens e mulheres livres que quando querem podem se isolar ou não.

Será exigido de cada um muito crescimento espiritual, muita capacidade de diálogo. Largar os seus conceitos individualistas e aceitar-se com membro de uma comunidade, com responsabilidades maiores. Este novo homem vai se interessar mais pelo planejamento dos nascimentos, com certeza um dos principais itens a ser discutido pela tribo organizada e futurista. Pois ele vai ser pai de muitos filhos, vai se interessar, não somente por seu próprio orçamento, mas pelo de todos. Este sentimento do nosso, pode contaminar a toda a sociedade. E quem sabe daí, que desapareçam de nossas ruas, as crianças abandonadas que um sistema familiar vigente permite.

Como nos ensinava acima, Paul Karlson, o homem pode abstrair, criar números imaginários que acabam tendo aplicações que vão além do habitual, mas na sua vida ordinária, aquilo que deveria ser a parte mais importante de uma existência, que se sabe passageira, a isto fecha-se os olhos e aceita-se a tradição escravizadora, massacrante, e da qual se excluiu totalmente o prazer. Naquilo que é talvez mais importante, não nos arriscamos a inventar.

Pois do mesmo modo como um matemático abstrai e cria uma entidade arbitrária a partir de algarismos já conhecidos, fazendo nascer uma nova classe de números com inusitadas propriedades, e utilidades práticas, se poderia abstrair dos costumes conhecidos para imaginar uma realidade social outra. Mais aperfeiçoada pela capacidade de imaginação, mas imaginação sustentada na racionalidade, como esta que orienta o experimento científico.

De qualquer modo fica aqui a idéia, certamente precisará ser aperfeiçoada. Com a certeza de que a história não parou, e enquanto permanecerem todas as dificuldades que se vêm atualmente, não vai parar. Parece que está implícito no destino humano a obrigação de construir um futuro melhor.

Matéria viva

ORIGEM

MATÉRIA VIVA

Para quem se vê em meio aos respingos, à beira-mar, e assiste o ir e vir da água, freqüentemente atravessada pelos mais diversos seres, filamentosos, flexíveis, serenos ou inquietos e ágeis, estendendo-se ou recuando conforme o movimento das ondas, a vida é algo que se ajusta a todas as circunstâncias. A mesma surpresa no caso oposto, na terra, quando se olha para paisagem, que extremada aridez faz poeirenta, porém mal chegam as primeiras chuvas do verão e já explode o verde, e imediatamente cobre tudo, como se fosse um felpudo tapete. Neste caso somente nos resta supor a preexistência de sementes, que no entanto, ninguém havia semeado; e se as houvera, perdidas em meio a toda aquela secura, até ali haviam se mantido praticamente invisíveis. Para o espanto de quem a observa, a vida manifesta uma estranha autonomia, oportunamente perceptível a partir desse brusco emergir do solo como os vegetais desabrocham em abundante diversidade de espécies.

Mas por um momento pode parecer difícil aceitar que nós também surgimos da terra. Que homens e mulheres tenham vindo de um amplo afloramento que se deu sobre o planeta; e do qual brotaram todas estas inumeráveis formas vivas. Se para a constituição química do nosso corpo contribuem quase os mesmos elementos encontrados nas células de plantas, seria lícito supor-se algum parentesco entre humanos e estes incomunicáveis e tranqüilos seres verdes. Mas mesmo se isto não se revelar totalmente válido, diretamente, ameaça corresponder sob um outro aspecto ainda mais geral. Pois os elementos necessários a que se produzam corpos, vegetais ou animais, estão disponíveis à toda nossa volta. Desde o mínimo grão de areia, multiplicado à inimaginável potência em uma praia, a pedras, montanhas, vales e planícies que se estendem ao fim do horizonte, não passam de diferentes aspectos como se apresentam para os nossos olhos. Pois são estes os elementos que formam o próprio corpo da Terra.

Sendo a composição química de um planeta, quase a mesma que esta dos seres que o habitam, avança-se pelo menos um grau na direção de se confirmar a possibilidade citada acima. A de que a vida tenha brotado diretamente desta mesma terra que, pacientemente, nos suporta na sua superfície. Para humanos, isto pode parecer até meio assustador, pelo inusitado, ou talvez por provir de onde se espera apenas imobilidade e submissão, que é como se nos apresenta essa enorme massa de terra eminentemente sólida. Mas ao se dominar a surpresa inicial, alguém pode verificar que a proposição se demonstra com exemplos até visíveis. Pois cá está o cálcio, ou o magnésio, que nos formam os dentes, os ossos; este material tão íntimo do nosso corpo. E o mesmo princípio também está presente, lá, na consubstanciação da pedra. Algo semelhante acontece com o potássio e o sódio; o fósforo, o enxofre ou o ferro; este contribui como componente da hemoglobina, substância que possibilita a oxigenação do sangue nos pulmões. O que há de fundamental nos mecanismos que permitem a respiração. É de se admirar que tenhamos este ferro no sangue, e que ele misture-se e se combine com o ar que respiramos. Faz lembrar o verso do poeta[1]: “Oitenta por cento de ferro nas almas”. A surpresa maior vindo de que sejam estes poucos elementos, reunidos em uma rede que os entrelaça, o material de que são compostos os corpos; tanto de animais, como de plantas, ou de pedras.

Aponta-se para algo em torno de vinte, os elementos principais, necessários a que se componha uma célula viva. Em primeiro viria o carbono, aparentemente a base do sistema químico que propicia a vida. Estes átomos apresentam, como característica, uma grande capacidade em unirem-se entre si mesmos, ou a outros diferentes átomos, em numerosas composições. Como se possuíssem presilhas, prontas para se acoplarem a todo tipo de material. Seriam os tijolos a constituírem o alicerce fundamental que irá sustentar a obra. Sabe-se que no interior da célula, a vida se organiza em complexos aglomerados de elementos, em proteínas; a composição química que transcendeu a condição material e tornou-se viva. Sendo o carbono praticamente o esqueleto dessas proteínas. Em seguida viriam o hidrogênio e o oxigênio, gases que, juntos, na proporção de dois para um, e sob certas condições, podem se fundir em uma molécula de água. Inclui-se ainda o nitrogênio, também chamado de azoto, o gás que constitui cerca de 78% do volume atmosférico, a maior parte disto ao qual reservamos o nome de ar. Ar, água e terra. Da terra vem o que há de mais substancial, os metais: O cálcio, classificado como metal alcalino terroso; potássio e sódio: metais alcalinos; além de ferro, cobre, zinco, manganês, magnésio, molibdênio, cobalto. Algo da característica dos metais ainda persiste no fósforo, enxofre, cloro, boro, iodo.., considerados metalóides.

Como isto se deu ? A transmutação de terra, água e ar, presumidos como inertes, em gente, compõe, talvez, a mais fantástica fábula que nenhum escritor conseguiu jamais elaborar. Abstraindo-se as longas etapas no tempo é como se esta enorme massa de terra, tão pacata e aparentemente imóvel, viesse a se erguer em árvores e florestas, pondo-se a andar e a voar, ao assumir o formato animal, e a pensar e a falar, já quando sob a condição humana. Há este enigma pairando assim às nossas portas, um desconhecimento profundo quanto a esta nossa origem. No íntimo cada um de nós sabe disso, embora não nos ocupemos muito com o fato. Preferimos não pensar, e simplesmente ir tocando a vida. Na atualidade o comum será o assunto ser logo tachado de metafísico, e abandonado; considerando-se inútil ocupar-se de algo assim.

A acomodação e fenecimento da curiosidade acontece, principalmente, porque nunca falta explicação. Cada povo reuniu o seu conjunto de “verdades”, espontaneamente construindo ideologias, cuja função principal consistiria em responder a esse questionamento fundamental sobre as origens. Vindo, em seguida à explicação principal, os desdobramentos necessários sobre os significados de tudo mais; com uma resposta pronta para cada questão. Sendo por meio de uma infinidade dessas pequenas, e aparentemente insignificantes, verdades que se sustenta a concepção da realidade. A personalidade não passa de um conjunto de decisões predeterminadas, com base na memória e em certezas adquiridas por influência da comunidade. As certezas acalmam o sujeito, pois permitem que ele se organize interiormente, e a partir daí tome decisões e as assuma em atitudes práticas. E uma resposta, seja certa, ou, mais provavelmente, não, de qualquer modo, anula a pergunta, e mata o núcleo da curiosidade.

Cada um de nós cresceu sob a influência de explicações que já estavam prontas muito antes do nosso nascimento. Tais significados vão sendo introjetados, ao mesmo tempo que se toma consciência do mundo. A personalidade forma-se com base no modo como pensa a sociedade no interior da qual a pessoa surgiu. Consolida-se um simulacro de consciência. A consciência como que tomada de empréstimo ao meio social. Pois a concepção da realidade acaba vindo da perspectiva que é o próprio sujeito; inserido em uma comunidade, que o leva a pensar , a agir e até a ver, de um modo predeterminado.

Inúmeros são os povos, mas desde a menor tribo, nenhuma delas deixou de elaborar a sua própria explicação para a origem da vida. E cada uma destas mitologias veio sob uma formatação diferente. Mas apesar da existência desses múltiplos modos de ver, um fato é comum entre todos eles. Pois se parte sempre do princípio que sabemos. Que se sabe. Que alguém sabe. A nossa verdade é “a verdade”. Do mais primitivo aborígine, ao homem pós-moderno, todos estiveram, e ainda estão, absorvidos por uma verdade básica que os sustenta mentalmente. Assentados todos em uma lógica, proveniente de uma cosmogonia, que torna inteligível a existência. A verdade orienta, e permite que se assuma o que se é. Permite que se defina uma personalidade. Uma inarredável explicação sustenta as crenças, e a personalidade, e daí, as ações e atitudes. Nunca duvidamos, pois este núcleo de verdade é o que nos supre o nosso ego. Para isso nossos pais nos ensinaram com tranqüila autoridade. Desde a nossa mais tenra infância. Eles, por sua vez, quando crianças, teriam adquirido a fé nestes mesmos dogmas que, com certeza, os seus próprios pais também lhes impuseram.

Daí entender-se, que em qualquer das épocas vividas, geração após geração, onde haja humanos, uma ideologia qualquer sempre estará respondendo a esta mesma pergunta fundamental: De onde viemos? Qual é a nossa origem? Praticamente todas as respostas são risíveis. Se não se trata da nossa própria verdade, claro. Mas, a rigor, nenhum homem poderia responder a esta questão. A memória humana é algo que se firmou com a consciência, logo, não alcança um passado muito distante. De nada nos adiantará procurar por testemunhos antigos, nenhuma arqueologia irá impedir a conclusão inevitável: a humanidade surgiu sem ver como. Do mesmo modo como ainda hoje continua acontecendo para cada criança que nasce, ninguém teve consciência do seu próprio nascimento; muito menos do anterior, da genealogia que veio dar nessa sua materialização em cima do planeta. Do ponto de vista individual, o mesmo fato continua acontecendo até hoje: de repente alguém se dá conta de que existe. Apenas isto. Só a partir daí ele vem a obter o poder de conjecturar de onde terá surgido.

O que há de consistente, e ao mesmo tempo desconcertante, é que estamos aqui. Eis aí uma verdade concreta. Pois ao dar-se por si, alguém já se vê preso dentro desse seu corpo sólido, e autônomo em sua existência material própria. Autônomo também em sua fisiologia, e talvez até mesmo no âmbito anímico. Não sobra quase nada para a consciência controlar. Somente algo realmente fabuloso poderá significar esse nosso surgimento, dentro de um corpo, cuja linhagem ancestral há muito tempo já vinha circulando por cima do planeta azul; pleno de azul, a cor do oxigênio, que todos os seres vivos respiram.

“ A Terra é azul!!!” Já em 1961 se admirava Gagarin, Iúri, o primeiro homem a ter o olhar a partir do espaço. Pela primeira vez alguém consegue se afastar o bastante para obter uma visão de fora. Um novo momento para a humanidade. Quando acontece que finalmente um homem pôde se ver separado desse seu planeta-mãe. Agora temos esse novo olhar para o nosso mundo. Um olhar de fora. E com todas as constatações acima, conclui-se que esse não deixa de ser um novo olhar sobre nós mesmos.

De repente eis que se obtém uma outra percepção da vida. Uma outra visão do significado maior que possa vir a ter todo esse conjunto. Por esta nova perspectiva a humanidade adquiriu poder. Quem até então estivera impiedosamente preso à terra, voa, e solta-se para uma visada espacial. Olhando para a Terra da perspectiva em que ela nos surpreende, por sua semelhança com um grande ovo, sem casca, onde também há diferentes camadas materiais, superpostas, e separadas por densidades diversas.

Como esta clara atmosfera em que vivemos, em meio a um evanescente, porém coeso, gás azulado, responsável por uma infinidade de vidas que se nutre no seu interior. A nossa gema é um núcleo de fogo, e se torna evidente ao jorrar pelos vulcões. O núcleo, ainda incandescente, hoje encontra-se coberto por uma camada que se solidificou com o tempo. Sendo bastante provável que um dia, num passado muito remoto, tudo isto aqui esteve completamente em chamas. Teríamos então surgido a partir do fogo. Ou melhor, a partir dessa massa de materiais em ebulição. Mas se houve fogo, há também a água. Os dois estarão sempre se complementando. Apesar de um não ficar onde o outro estiver. Se cai no fogo a água se evapora e foge, se cai na água o fogo se apaga e morre. Esse combate é um acontecimento natural, conhecido e portanto, presumível. Daí que uma crosta vai se solidificar com as muitas, e constantes, chuvas. Se resfriando o bastante para permitir que a água pouse sobre a matéria que se formara. E, a partir dessa influência, o fogo central vai se reduzir cada vez mais, até ao atual estágio. Quando a temperatura global permite o surgimento de gelo, nos cumes das montanhas, onde o calor que vem do centro da terra já não alcança; ou cobrindo completamente o solo, e os mares, nos pólos; onde a irradiação solar não incide de modo direto.

Conforme perde calor o planeta diminui de volume, o que se sabe, acontece a qualquer corpo. A estrutura consolidada a quente, ao se resfriar e enrijecer, não resiste à pressão que se acrescenta à medida em que vai se encolhendo. Isto explicaria o rompimento das primeiras crostas externas que se formam dessa contínua contração. Em várias etapas, distanciadas entre si por grandes períodos de tempo, o globo terrestre vai se rachar ao nível das camadas superficiais, abrindo-se em escarpas de monumentais camadas de pedra. Separa-se no que são hoje os continentes. No momento desse cataclismo ocorrem desequilíbrios, choques violentos, blocos imensos afundam, outros elevam-se; bordas rompidas erguem-se em cordilheiras que atingem as nuvens. Nas baixadas formam-se lagos e mares. Sempre abastecidos por rios, que foram chuva, constantemente a cair sobre as montanhas. Toda esta água acaba por cobrir a maior parte da superfície. E também já tendo impregnado o subsolo, unifica-se em aglomerados subterrâneos, os chamados lençóis freáticos. Daí jorram os rios, o caminho por onde são conduzidos os elementos químicos que vão sendo dissolvidos pela chuva. E é assim que a água se põe a edificar sobre a carcaça do material roubado ao fogo. Modela a pedra e a dilui em sais, aplaina, corrói, dilacera. A água constrói vales e esculpe montanhas nesse seu, quase sempre, longo caminho das alturas até o mar. Sempre escorrendo e em freqüentes quedas, se bate contra a pedra, e juntas entoam melodias naturais que atravessaram milênios. Muito antes que qualquer ouvido pudesse estar aqui para escutar.

Enquanto a água se evapora e foge de novo para o céu, reiniciando incansavelmente o processo, embaixo, os sais, mais pesados que o ar, cada vez mais se concentram em uma espécie de caldo. Um caldo salgado com tudo o que veio da terra. Pois recolhendo desde as primitivas cinzas vulcânicas, ao que restou da dissolução da rocha, a chuva purifica o ar, lava a terra. E é na água que a pedra, que se desfez, afunda, dissociada em areia; ou esparge-se em sais metálicos, que por diminutas as suas porções, mantêm-se em suspensão. A persistente, e por isto mesmo, sempre cumulativa, concentração de sais, faz crescer as oportunidades para que certos elementos venham a se encontrar. A água é o meio que lhes possibilita movimentos, a que misturem-se entre si. Aí realizam-se encaixes, composições. Substâncias tomam forma. Teoricamente conduzidos por uma predileção eletromagnética pela qual matéria atrai matéria.

Vem dessa sua capacidade de ação, e disponibilidade para promover ações, que a água se situe no centro do processo de constituição da vida. Pois se é nela que a vida surge; acresce ainda, que até hoje, o que torna possível a cada célula manter-se viva, fora do mar, mesmo em ambientes secos - como nos desertos, vem de se resguardar imersa nesse suco que é o citoplasma. As células vivas são quase líquidas, aproximadamente 80% de água; e protegidas por uma membrana elástica que a contém, evitando que se evapore. Com as plantas acontece algo semelhante. Além da membrana, suas células são revestidas com paredes firmes de celulose, a madeira; que parece constituir-se em algo como se os ossos dos vegetais. É possível então se verificar, que na água a vida não apenas surgiu, mas ainda é assim que ela continua mantendo-se até hoje. É como se aquela estrutura, que se consolidou, tendo a água do mar como condição primeira, a partir de então tivesse de conduzir esse seu ambiente original consigo, para qualquer lugar aonde vá.

Lentamente, através de milênios, a cada dia aumenta a densidade da água do mar. Pelo poder dos rios que até ali levam os sais. E a partir de um determinado grau de salinidade aglomerados diversos vão agregar componentes, movidos pela atração entre os elementos. Em um primeiro momento os compostos químicos, que se formaram, vão constituir apenas uma gosma sobre a superfície líquida que, em ramificações extensas, reage e vibra quando sob a luz do sol. Absorve assim a força motriz que a faz pulsar, para que se dêem reações eletroquímicas em seqüências, produzindo encadeamentos cada vez mais complexos. Até que forma-se uma rede onde se troca energia, entre elementos atrativos entre si, tomando-se a direção ao conjunto e em seguida ao funcional. No momento em que uma corrente elétrica vence o espaço entre os pólos que se atraem e encontra o seu caminho, fecha-se o circuito fundamental. Dá-se a partida inicial em uma atividade que continua até hoje: a vida.

Mas para prosperar nessa agitação que é a vida, a célula precisa providenciar transporte de substâncias, realizar deslocamentos diversos, concluir trabalho. Nessa movimentação consome energia. Vida significando movimento: inspirar e expirar, sístole e diástole, absorver ou expelir. Enfim: a célula viva precisa de energia, e calor, para engendrar o seu processo. Do mesmo modo como continua acontecendo até hoje, a primeira inspiração teria significado, antes de mais nada, a queima de substâncias materiais na produção de calor. Por meio dos mecanismos da respiração. Que nada mais seriam do que a câmara onde se queima algum combustível para alimentar a matéria viva. Por isto o que é vivo precisa absorver oxigênio. Gás comburente, aquele que viabiliza a combustão; sem ele nada acontece. Queimar viria ser algo como dissolver-se em oxigênio. Ao respirar, a célula viva queima substâncias para adquirir força. Oxida calorias no interior do corpo e este absorve a energia que se difunde a partir daí. O formato mais elementar da matéria, o hidrogênio, quando queima, desfaz-se, liberando calor e energia.

Repete-se então com a célula, em nível micro, o modelo proveniente do macro cosmo, cujo sistema energético se baseia na constante queima de hidrogênio. Sendo somente fogos o céu estrelado. Do mesmo modo, cá, embaixo, um novo sistema de forças se inicia com esse primeiro núcleo de vida. Um micro sistema, que por se exercer em circuito fechado sobre si mesmo, torna-se autônomo. No corpo humano as calorias vão a cada célula através do sangue, junto com o oxigênio que mistura-se a este nos pulmões. E aí, elas são incineradas para gerar energia. Inspire: múltiplo nas suas muitas células, é como se qualquer um de nós fosse a composição de uma permanente fogueira ambulante, em miríades de microscópicas chamas intermitentes. Uma fogueira mantida sempre sob controle, claro. Nada muito difícil, com toda esta água também contribuindo para formar o corpo. Expire: Neste segundo movimento acontece a eliminação dos resíduos. CO2, o carbono, que subsiste sempre que há combustão de qualquer material orgânico. Como se o carbono fosse um suporte, ao qual se agregam substâncias inflamáveis (hidrogênio), para levar ao fogo. A molécula desfaz-se e, no processo, gera calor. Sobram os átomos de carbono: os resíduos de uma estrutura molecular que se desintegrou. E assim a célula obtém a energia necessária para movimentar-se.

Ao respirar, a proto célula ganha energia e transforma-se em matéria viva. Pulsa. Um pulso realiza-se em seqüências bipolares, seguindo como se fosse um motor a combustão. No homem isto se dá pelos movimentos do coração. Um órgão que se movimenta entre sístoles e diástoles, e assim vai bombeando o sangue a todas as partes do corpo. Alguma relação deve haver entre essa bipolaridade que a vida apresenta na sua constituição, e a contradição natural básica que, do ponto de vista de quem está no planeta, se concretiza nas situações opostas do dia e da noite. Devido a esta sua constante rotação, a este seu dinamismo peculiar, a esfera terrestre se vê submetida a uma constante alternância de situações: sob o foco da luz do sol, ou o oposto: na escuridão da sua ausência. Sucedem-se calor e frio, e conseqüentes diferenças de pressão. Seguem-se movimentos do ar, de correntes marinhas. Águas aquecidas ou geladas , serenas ou sacudidas pelos ventos. Sol, ventos, nuvens, trovões, relâmpagos: a chuva. Como se seguisse o ritmo natural da pulsação de um organismo vivo. Por esta agitação, sempre estariam ocorrendo reações entre os compostos, os mais diversos; expostos ali, ao sabor das ondas, do sol, o frio, as chuvas ou descargas elétricas. O mar como um imenso tubo de ensaios, que se aquece, se resfria, agita-se e depois se deixa repousar. Um processo que se repete incansavelmente, através de um tempo sem nenhuma pressa.

Daí que a alternância de situações, pelas quais animais se entregam a esta compulsão a dormir periodicamente, talvez se mostre mais como uma conseqüência; uma espécie de memória residual, proveniente do modo como a vida se formou. Pois é possível imaginar-se que, entre o inanimado e a vida, tenha se dado um extenso período de tempo em que os processos vitais somente acontecessem sob a luz. E o repouso, através da noite, significaria o retorno ao inerte: A cada dia, após o sol se pôr, mais uma vez a noite caía sobre um planeta onde, depois de algum tempo, não mais restava nenhuma vida.

Com a luz do sol, novos seres viriam se formar nas reações químicas que o sistema, já montado anteriormente, conseguia engendrar. É possível que já desenvolvessem funções de seres vivos, como se realmente células vivas, porém não teriam como armazenar o calor. Quando a luz se acabava, eles iriam murchar, perdendo pouco a pouco a sua motilidade e finalmente interrompendo o processo vital. Uma existência com este estilo: premida entre dois extremos. O sol a pino com exagerada excitação, ou a completa inércia mineral que inevitavelmente retornava ao decair da noite.

A manifestação da homeostase, própria de um corpo que procura o equilíbrio, mantendo um certo grau de calor interno, iria ter os seus inícios aí, ao mesmo tempo em que se iniciava a vida. No momento quando a proto célula procura desenvolver mecanismos para resguardar o calor, buscando prolongar cada vez mais as atividades vitais e a sobrevivência. Somente assim podendo finalmente ultrapassar aquela rotina diária, de repetidamente recolher-se e findar-se em torno de um minguante foco de calor. Nesta luta em que busca se afirmar a vida, logo iria surgir o dilema, entre optar-se por se resguardar, e ao mesmo tempo permitir que morressem partes mais externas; produzindo uma couraça de proteção contra o frio que avança de modo inexorável. Longinquamente relacionado, mas semelhante a como, até hoje, algumas plantas mantêm-se em uma espécie de dormência sob condições muito adversas. Enquanto tudo em volta morre, paulatinamente se destaca, se desativa e se preserva um núcleo vivo. Provável que assim tenha se dado a criação do núcleo das primeiras células. Aprende-se a dormir como um modo de subsistir.

Mas o sistema vital em formação, na luta em busca de autonomia, vai precisar manter-se em completa interação com o meio. E a partir daí instaurar a continuidade do seu processo. Aprendendo a suportar, desde os mais altos graus de radiação durante a vida diurna, super ativa, ao frio dessa morte noturna, quando é obrigado a retornar ao inerte. Para manter-se o equilíbrio, dentro de um limite, situado qualquer grau positivo acima da inércia, e alguns abaixo do que recebe, de toda aquela carga de energia que o atinge diariamente, se constituiria, após tempo suficiente de maturação, a funcionalidade de um sistema de compensações. Cuja missão principal seria a busca por uma estabilidade do processo vital. Estabilidade que pressupõe continuidade. Adaptando-se às condições desse meio dualista. Porém mais do que subordinar-se, a vida irá apoiar-se nestas condições. Assim como a aranha acolchoa o seu casulo macio na eventual reentrância da mais dura pedra.

Vegetais

Submetidos a esse diálogo com um meio muito bem determinado em sua ambigüidade, entre o fogo e a água, os seres que nasciam para a vida precisaram adaptar-se a estas condições concretas que, bem antes, aí já prevaleciam. É em conseqüência disso que a vida veio se situar em um lugar de equilíbrio, em respeito a esta duplicidade a que teve de se submeter para emergir dentro do mundo. Na distância intermédia entre a excessiva força da luz, durante o dia, e o hiato da sua ausência, através da noite, ela surge no interior desse espaço delimitado em que se protege da radiação, enquanto, ao mesmo tempo, desenvolve mecanismos destinados a reter a energia da qual consegue apossar-se. Pois é a partir de um controle que este aglomerado obtém sobre si mesmo, o governo sobre movimentos, no exercício de uma emergente vontade, que a vida assume a autonomia de ação que lhe é própria.

Como garantir a permanência do calor e da atividade vital ? A essa questão os vegetais respondem com os carbohidratos. Um modo de armazenar a luz do sol para atravessar a noite mantendo acesa a chama da vida. Estes seres desenvolveram a capacidade de absorver a energia solar e, por esta força, reunir em uma molécula, o carbono do ar, o hidrogênio e oxigênio da água, no processo atualmente conhecido como fotossíntese. Construem assim, reservas de calorias, sob a forma de carbohidratos. Quando se quebram as cadeias desse composto, obtém-se, por reversão, o mesmo potencial utilizado na sua confecção: a força do sol. Nos carbohidratos é como se a luz do sol tivesse sido aprisionada em pílulas. São estas calorias que, a partir daí, permanecem disponíveis sob a forma de amido, de açucares, álcoois, etc., e vão ser usados para manter a vida acesa durante a noite, e também durante o dia, sempre que a planta tiver necessidade delas. Acabaram-se as noites absolutas, a partir daí a força do sol passa a estar disponível no mundo de modo permanente.

Assim é compreensível que a completa dependência quanto a uma fonte de energia explique a orientação para que hoje, aqui, tenhamos esta existência formatada em desenhos distintos dividindo a nossa vida em duas. As plantas, quando vem a noite, suspendem a absorção do dióxido de carbono, param a produção de carbohidratos, e em conseqüência, também deixam de liberar oxigênio. É compreensível, pois dependem do sol diretamente. O mesmo não poderia ser dito quanto a animais, que também mudam de comportamento: tornam-se lânguidos e deitam-se, permanecendo imóveis. Altera-se os batimentos cardíacos, a percepção é parcialmente embotada; os olhos se fecham. Parece que em contrapartida aos resultados que a vida vem conquistando a partir daqueles inícios imemoriais, restou então alguma memória do passado de vida intermitente. Aquele aprendizado em dormir como um modo de subsistir. A herança proveniente de um tempo em que a vida ainda não havia se descolado completamente do estágio mineral.

A Terra gira. Ciclicamente repetem-se todos os mesmos passos. Assim, quando a cada novo dia mais uma vez vem o despertar, ainda hoje pode-se considerar o fato como se um renascimento. Como se recomeçasse tudo outra vez . Não só o renascer da consciência para o sujeito que acorda, mas perceber que há também um ciclo para cada célula. Sabe-se que, no corpo humano há células que se renovam a cada vinte e quatro horas. Com períodos maiores ou menores o mesmo acontece a todas estas mínimas partículas vivas que o compõem. Continuam nascendo e morrendo, ciclicamente. Mas pelo fato de que se reproduzem antes de morrer, nunca deixa de existir vida. A vida sendo um fluxo. O ser vivo está tomado por este dinamismo. Tarefas em número inimaginável estarão continuamente sendo realizadas, de modo automático e submerso, para que a alma possa vir e pairar na superfície desse corpo, na dimensão existencial onde se atinge a consciência de si.

É possível que o processo da vida tenha se iniciado em inúmeros pontos dispersos pelo mar. E devido à própria fluidez das correntes marinhas, rapidamente todas estas primeiras formas vivas entram em contato. As trocas genéticas que conseguem realizar, e as mutações resultantes, teriam dado origem aos vegetais que hoje habitam o planeta. Do mar eles subiram para a terra e se multiplicaram. Aprenderam a penetrar no solo e procurar o alimento. Para isto desenvolveram raízes, quase que apenas tubos para sugar água e nutrientes diretamente no solo. Foram atrás do alimento, ao invés de ficar esperando que ele viesse pelos rios, até o mar, como devia acontecer nos inícios, e ainda acontece para algas e plancton vegetal. Seguindo essa rota do alimento, rio acima e por seus afluentes, as plantas disseminaram-se pela terra afora.

Animais

E será possível também se imaginar, entre aqueles aglomerados químicos, provavelmente numerosos, que vinham se formando, buscando a condição viva, e que ainda se encontrassem a meio caminho do processo quando da eclosão vegetal, que alguns destes evoluíssem para outros modos de existir, após as transformações provocadas por este fato que, com certeza, foi marcante. Entre as modificações certamente estaria a difusão de oxigênio, com bolhas desse gás espalhando-se de modo contíguo. É de se imaginar que desde os primeiros instantes o oxigênio tenha sido usado pela proto-vida que, durante o dia, se agitava sob processos vitais incompletos. Por terem surgido depois, iriam aproveitar a oportunidade que significou a eclosão dos vegetais: beneficiando-se desta nova condição ecológica. Agarraram-se a esses seus parentes bem sucedidos, mas concretizaram um outro ramo(reino) da vida. Diferentemente daqueles, talvez para queimar etapas, divergem então, tomando uma direção que somente torna-se viável sob as novas condições. Ao invés de produzir o alimento, a partir do sol, como os vegetais, desenvolvem estratégias para se apossarem da energia que estes aprenderam a acumular. A tendência mais geral foi a de englobar a outra vida, absorvendo-a; o que deu em bocas e dentes, em línguas, garras, estômagos e outros modos que desenvolveram as incontáveis formas vivas que iniciaram o reino animal.

O primeiro impulso da vida animal, este ao qual dou o nome de “bocas e dentes”, mostra-se talvez, como uma dessas tendências básicas, e materialmente, talvez a de maior peso, para a origem e existência do reino. Desenvolveu-se seguindo essa sua direção, até atingir o ápice, com os sáurios gigantescos. Realizando este périplo, “bocas e dentes” teria percorrido um ciclo completo. Nasceu, cresceu e então aquele impulso animal vai extinguir-se, após brilhar como o fruto exponencial de um primogênito vigor. Seria mais um elemento a apontar a condição viva para o planeta. Sendo também a partir dessa vitalidade que surge e expande-se em formas autônomas; e a evolução a essa verdadeira explosão mostraria o auge de uma força, a de um planeta ainda jovem e já monumental. Assim como todo ser vivo nasce e cresce e somente depois mostra-se em toda a sua potência, um planeta cheio de energia assiste a vida surgir do mar; e de um começo microscópico e tímido, logo dissemina-se e torna-se questão de tempo o alcançar o ápice desse seu desenvolvimento. O auge para os vegetais, o seu florescer máximo, teria tido lugar durante o Período Carbonífero, ainda no Paleozóico. Logicamente teriam de vir antes, dada a aquela sua condição de precursores no processo da vida. O auge animal irá ocorrer no Jurássico e Cretáceo, já no fim da Era Mesozóica.

O que havia de mais imediato no impulso que tomou a vertente animal, o ato de agarrar e comer, cada vez mais supera-se a si mesmo, seguindo essa sua direção. E a tendência a cada dia torna-se mais e mais poderosa. Tanto do ponto de vista da dimensão dos corpos, que se iniciaram microscópicos, e se tornaram gigantescos, quanto do seu número, que logo se multiplicou. O Reino inevitavelmente teve um inicio vegetariano, mas não demorou para logo voltar-se também contra a própria carne animal. O aumento da capacidade em matar e comer, e as crescentes dificuldades de sobrevivência daquelas espécies que abasteciam essa imensa fome, em algum dia convergiriam para o impasse. O processo teria um crescimento, o auge desse crescimento, e depois teria que infletir desta tendência ascendente. Algum limite, a nível planetário, estabeleceria uma carência. Até onde pode ir o crescimento. E entre as espécies, um número determinado de indivíduos a disputar o ecúmeno. Daí que a mesma lógica que leva ao crescimento, determina os mecanismos para conter-se uma determinada vertente daquela vontade natural. Submetendo-se sempre a uma norma ecológica e às suas conseqüências imediatas: como esta, de que, em contradição ao crescente número de predadores, em um determinado momento, espécies predadas haveriam de se extinguir.

Com a fonte de alimentação desaparecendo, justamente enquanto ocorria a maior expansão de uma superpopulação de carnívoros muito eficientes, resultou em um choque ecológico. Um desequilíbrio natural, previsível como as equações provenientes de um desenho geométrico. Se a energia dos vegetais possibilitou a geração de herbívoros, estes possibilitaram carnívoros, distantes um elo da fonte básica de alimentação que é a terra. Se falta um elo dessa corrente, torna-se previsível a falha, o rompimento e a queda. Carnívoros morrem mas não se alimentam de erva. Uma conjuntura muito desfavorável, como, por exemplo, uma mudança de estação e a diminuição da vegetação, pode provocar transformações ecológicas significativas. As plantas também tiveram o seu auge, uma crise, com extinção de muitas espécies, e evoluíram. Seguem em contínua mudança e readaptação. Claramente mostram esforço no sentido a evitar serem comidas por animais, daí terem desenvolvido espinhos, por exemplo. Assim é que é factível que eventualmente venham a se retrair, tornando-se menos disponíveis para um número de herbívoros cujo número não pára de crescer. A situação agrava-se, também pela crescente demanda sobre os herbívoros, por parte dos predadores carnívoros. A confluência desses diversos fatores, silenciosamente vai levar à extinção de uma, ou algumas primeiras espécies. Mesmo se insignificantes, do ponto de vista da sua dimensão, torna-se o mínimo e primeiro elo que se rompe e vai induzir uma série de mudanças. A espécie, que daquela se alimentava regularmente, precisa mudar de cardápio. Passando a competir em outras searas, onde não se lançava anteriormente. De degrau em degrau, vai-se avançar até se competir com o predador máximo. Rompeu-se o equilíbrio em um sistema ecológico. Quanto mais se força, mais aumenta a pressão sobre as espécies predadas, resultando em subsequente extinção de mais espécies. A cada dia a caça disponível terá que ser disputada por um número maior de predadores. E a cada dia desaparecem mais espécies. Incluindo-se aquelas que, apenas alternativamente viriam suplementar aquela imensa fome. Depois de desencadeado o processo, este avança por si, até o desfecho. E isto talvez sirva para mostrar que há uma direção, uma finalidade orientando o processo natural como um todo. Haveriam coordenadas para as causas e as conseqüências pelas quais se tem a feitura de uma história natural. Cada desvio é enquadrado e recebe uma resposta. Sempre que se atinge algum patamar, passa-se a uma outra etapa, com outros desenvolvimentos levando a alternativos destinos. A crise que atingiu o reino animal naquela época, estaria condicionada ao formato como as espécies existentes se colocavam dentro do mundo, o papel que cada uma delas representava para uma ordem ecológica que efetivamente predominou durante algum tempo.

Os grandes carnívoros prevaleceram, enquanto durou o tempo de vigência de um ciclo ecológico, que os admitia. Mas chega a data quando aquela conjuntura se vê negada e vem a crise. O crescimento ultrapassou algum limite. E tudo aconteceu em um curto período de tempo. Por esta razão não se permitiu que surgissem tendências de equilíbrio, em contraposição ao destino que de repente se impôs para aquelas espécies.

Um animal morre muito rápido após não encontrar mais comida. Em poucos dias os famintos predadores iriam devorar os próprios ovos, filhotes indefesos, os mais velhos e mais fracos, os jovens e inexperientes. Sem se esquecer o ataque mútuo entre espécies de predadores que, antes, sob as condições anteriores, conviveriam em paz. Todas as espécies predadoras entraram em competição pela pouca comida disponível. Tornando-se a comida e os comensais uma coisa só. Finalmente não houve nada mais para se comer. Muitas presas teriam porte diminuto, insuficiente para saciar a tanta fome. Outros havia que movendo-se com facilidade na água ou no ar, se safavam. Do lado do predador faltou-lhe experiência na caça a essas espécies que antes negligenciava; por possuidoras de hábitos ou habilidades desconcertantes e frustrantes. Tais como estas de se meterem por debaixo da terra, em buracos, ou de se atingirem altas velocidades, correndo, nadando, voando, etc.. Além de que, enfraquecidos, por seguidos dias de fome, muitos já não caçavam mais, e limitavam-se a deitar para morrer de inanição.

Milênios prepararam uma transição que acontece de repente. Em um momento perfeitamente determinado, chegou-se ao impasse. Já se verificou, por meio de pesquisas, que, em momentos de crise, animais tornam-se neuróticos, mudam de comportamento, perdendo a orientação natural dos instintos de sobrevivência. Algo assim pode ter ocorrido. Se macho e fêmea, remanescentes, viessem a se encontrar não procurariam mais fazer sexo, mas alimentar-se. O instinto de auto-preservação da vida, que vem por meio da fome, mostrar-se-ia uma necessidade mais imediata do que aquele da reprodução. E assim fechou-se o ciclo da vida para algumas versões animais. O que veio possibilitar a emergência de novas potencialidades no interior desse reino. Pois a extinção de algumas espécies, certamente foi condição necessária para a ascensão de outras.

E este foi o caso para os mamíferos, entre os quais vai se apresentar a espécie humana. Novas capacidades vindo substituir a ênfase em “bocas e dentes”, mas como é básica no animal, persiste, até onde continue havendo espécies desse reino. Ainda hoje a fome impõe o seu peso como condição para a vida animal, nisto incluindo os humanos. Continua, (2006 A.D.) uma realidade brutal para muitos dos nossos semelhantes.

É significativo que o fim dos grandes sáurios coincida com a ascensão dos antepassados dos felídeos, espécies hoje também extintas. Mas dos seus descendentes sobrevivem, até hoje, os leões, tigres, ursos, onças, e gatos, e principalmente hienas, mamíferos que também se alimentam de carniça. Quem pensa no final trágico dos sáurios não se admiraria de que algumas espécies tenham aprendido a sobreviver comendo o que restou da carnificina final. E adquiriu o hábito.

As novas espécies de carnívoros são todas de mamíferos, mas restritos às dimensões que variam à do cachorro ao leão. Vê-se que houve uma redução nas dimensões máximas permitidas ao modo de vida carnívoro. O que sustentava os grandes lagartos era a existência de herbívoros enormes e em grandes populações. Com o fim deste ciclo, desce-se um grau no patamar de poder fisiológico animal sobre o planeta. Irão predominar os mamíferos, carnívoros com dimensões menores.

Existem ainda outros reinos, cada qual uma estratégia de vida particular, caracterizando-se principalmente quanto a esta pergunta fundamental: como irá se alimentar. Naturalmente há uma premência quanto a essa necessidade básica: tudo que é vivo precisa de uma fonte de energia e de material de reposição ou crescimento. Como os fungos, reino fungi; que alimentam-se a partir de substâncias em decomposição. É possível que tenham surgido das possibilidades que vieram com todas estas vidas se manifestando. Passaram a utilizar os restos, que naturalmente são eliminados por animais e plantas. Sejam os corpos dos que morrem, ou os resíduos que os vivos expelem. Caso de cascas e folhas secas que se soltam em vegetais, ou de todo tipo de excrescências que animais lançam fora ciclicamente. Há pontos não muito claros, mas o certo é que diversas formas de vida imediatamente tomaram os mares, logo em seguida o planeta se constituir. Um tempo que se inscreve na ordem dos bilhões de anos. As provas estão aí na pedra, com os fósseis. Desde as primeiras tenras formas, microscópicas, que mal deixaram sinais, a enormes troncos petrificados, ou estes gigantescos ossos de animais, que ainda estão presentes, aqui, agora, contando uma história que certamente teve muitos capítulos.

Vontade natural

Mas se os primeiros seres vivos foram ancestrais das algas, ainda persiste o como se formaram. O faça-se ( fiat ), que deu início à vida. Contra uma concepção que simplesmente fala na reunião dos elementos químicos no mar, de maneira fortuita, como afirmam os que foram chamados materialistas, creio que poderíamos pretender que já haveria instruções prévias para uma força que se lança assim, de modo tão impositivo. O fundamento dessa instrução nada teria de sobrenatural, ao modo mítico e religioso, nem se limitaria ao acaso, como querem os partidários desse mecanicismo materialista. Haveria uma terceira opção, um vetor com o sentido de fundo orgânico. Uma organicidade, própria dos sistemas vitais. Isto uniria todos os fatores originais sob uma lógica única, já inscrita na particularidade de cada elemento químico e responsável pela geração de substâncias provenientes das suas combinações. Em conseqüência, esta condição, de fazer parte de um sistema, perpassaria a todos os “níveis existenciais”: Inorgânico, orgânico e anímico. O anímico, ao modo, talvez grosseiramente semelhante, ao mecanismo que nos dá os pensamentos, e a determinação. Seria então como se uma vontade natural, se exercesse e, desde já, revelando-se por esta predileção da matéria por si mesma. Já que matéria atrai matéria (Newton), esta então se reuniria em combinações que dão origem a substâncias como o fogo, a água, o ar, a pedra. E posteriormente a vida, quando finalmente ocorre, nos mares, a inter-relação entre todas estas primeiras instâncias primordiais.

No início de tudo, o fogo; nasceria dessa atração da matéria por si mesma. Esta seria a força originária que leva os mais básicos átomos, os de hidrogênio, a reunirem-se, condensando-se em incomensuráveis nuvens de gás inflamável. Eles se aglomeram a partir de um centro de gravidade inicial, para onde toda a força passa a convergir - o peso nada mais sendo do que a atração que se exerce entre a matéria. E o peso aumenta cada vez mais, intensificando-se contra o centro desse ambiente de força; e isto leva à fusão nuclear. Dois átomos de hidrogênio se fundem, dando nascimento ao hélio. Hoje sabemos quanta energia se libera quando acontece essa transformação da matéria. Uma pequena ação inicial provoca novas ações e tudo expande-se numa dinâmica reação em cadeia. Assim teria nascido o fogo.

Se esta suposição é aceita, ainda assim falta muito para que a explicação se complete. Se alguém é exigente e quer chegar à raiz do significado dessa origem, irá querer saber também qual causa nos trouxe esse hidrogênio primordial, essa primeira matéria, que está na origem do fogo. Mas para lá da matéria base, anterior ao nada, este algo anterior, a partir do qual origina-se o hidrogênio, nada se sabe (ainda). À falta de resposta temos que deixar a questão em suspenso. Quando não se pode ir por um caminho volta-se para o outro lado. O que temos, e que podemos analisar é o que veio a partir daquele início que efetivamente aconteceu em um determinado momento. Vê-se que havia, naqueles primeiros átomos, uma enorme potencialidade; esta que se revela com o desenrolar do processo. E hoje, situados no futuro daquele tempo, podemos olhar para trás, e para tudo o que existe, e ver no que aqueles primeiros átomos vieram a se transformar. O potencial que traziam em si, tornou-se em tudo o que existe atualmente. Esta é a resultante conhecida que nos permite inverter a equação. Partir daqui, do que conhecemos, para, em retrospecto, extrair o significado das incógnitas que deverão explicar até o mais original passado.

De lá até o presente vê-se que há uma direção. Toda esta manifestação material aparentemente segue um processo. Ao que tudo indica um projeto encontra-se acoplado ao aparecimento destes tênues átomos de gás. Pois estes primeiros átomos inflamáveis, movem-se, e unem-se. E mais do que unirem-se, fundem-se em novos núcleos; ao modo como a matéria, inicialmente leve, diversifica-se em novos materiais, cada vez mais pesados. A partir de algum momento inicial, quando nem havia ainda o hidrogênio, inicia-se o processo. E se desenvolve até a situação atual, em que todo um mundo se construiu. Hoje estamos na situação de quem pode olhar para trás, para aquele passado distante e ver a origem do processo a partir de uma grande explosão de luz. Com o surgimento das estrelas, os planetas, e daí as plantas, os animais, os seres humanos. Enfim, na existência de tudo e de todos.

Fica claro que não basta analisar a matéria para compreender a origem, não podemos partir do átomo, e ficar apenas no material. Será preciso observar que, anterior a tudo, possivelmente antes mesmo de haver matéria, já havia como se uma vontade natural que engendra o projeto. Algo está sempre se transformando em alguma outra coisa, como se buscasse chegar a um objetivo. Como se cada substância ou mesmo cada átomo, obedecesse a um plano. Cada elemento contribuindo para um sistema, que funciona de modo muito bem articulado. Como tudo na natureza, esse sistema deve ter a sua função. Uma finalidade. Se os metais estão presentes na conformação dos corpos animais ou vegetais, aí eles irão se ajustar em composições químicas, a favor de concretizações físiológicas, que aproveitam cada uma destas suas qualidades. Entre muitas é possível lembrar a resistência e, ao mesmo tempo, a maleabilidade, ou talvez ainda, a condutividade elétrica. Se o magnésio entra em combustão ou se o sódio emite eletricidade, quando expostos à luz solar, cada uma destas potencialidades seriam as partes componentes de um todo, que as contêm como elementos de um sistema.

Ou veja-se a água. Como poderia haver substância mais flexível e ao mesmo tempo tão incisiva. Passando do estado sólido, como gelo ou neve, líquido e gasoso já como mares ou nuvens; nem sempre visível aos olhos humanos, quando está dispersa como a umidade do ar. E não se pode esquecer esta sua capacidade, em estar sempre em movimento, sempre se esqueirando pelas frestas ou poros, seguindo as tendências impostas pelo seu peso, a sua fluidez e viscosidade. Somente esta sua funcionalidade permitiria a existência de rios. Esta extraordinária manifestação de graça natural. Rios, provenientes da chuva que cai nas partes elevadas do planeta. O fenômeno tem um significado providencial, devido às propriedades solventes que esta água acrescenta no rol das suas qualidades. Às quais se incluem, desde a ação de trazer o nitrogênio do ar para a terra, durante as tempestades, àquela que possibilita a dissolução da pedra em sais metálicos. Um dos mais corrosivos ácidos usados em ourivesaria, a chamada Água Forte, nada mais é do que o ácido nítrico diluído. O nitrogênio cai do céu e mistura-se com a água da chuva. E ao dissolver-se a pedra, criaram-se as condições para que se desse o encontro entre os diversos elementos simples que a formavam. Elementos singulares reúnem-se nos mares, onde se permite compor o complexo; que é como se apresenta a vida. Ao que parece a água vem a ser o meio que modelou a vida, o componente principal de um útero por onde ela emerge no mundo.

Mal comparando, toda esta mobilidade ou a mobilização que a água promove, estaria para o universo físico, assim como no interior dos organismos vivos ocorrem os movimentos peristálticos. Sem que se necessite de nenhuma decisão do sujeito, realiza-se a circulação de substâncias através do corpo. Seriam movimentos naturais, que ocorrem para tudo o que vive. Movendo-se e fazendo mover, estabilizando ou distribuindo as tensões a cada uma das partes de um organismo para o qual trabalha.

Face a isto, não seria por algo inexplicável, algum milagre, nem por outro lado, simplesmente pelo acaso, que os elementos se aproximariam, reunindo-se e construindo as primeiras células vivas. Mas sim naturalmente, passo a passo, e atravessando enormes períodos de tempo, porém com perseverança e firmeza e seguindo numa direção perfeitamente determinada. A um modo semelhante ao de muitos outros processos orgânicos conhecidos. Um ovo, uma semente, possuem, em si mesmos, as instruções que precisam para eclodir na existência. Seguem um projeto seqüenciado em etapas bem delimitadas. O que marca o ser vivo é este estar direcionado a algum outro desenvolvimento. Está sempre se transformando. E seguindo uma direção bem certa. Nenhum ser vivo, sob condições normais, pára o seu desenvolvimento e se queda duvidando qual o caminho a seguir. Cada corpo mostra estar possuído por um programa muito bem direcionado. Demonstram seguir um plano. Pelo modo como eles se movem, evidentemente possuem e estão possuídos por algo como se uma vontade natural que os orienta.

Ao mesmo tempo que estrelas nasceram e continuam nascendo a partir de grandes explosões de luz, respingos de matéria transformar-se-iam em planetas. Com o tempo o fogo se apaga, e as porções menores, se resfriam, e em um deles pelo menos, este que conhecemos, se desenvolve a vida. Alguns destes aglomerados de matéria em combustão, por suas grandes dimensões, permanecem em chamas. Como o sol. Ou, no extremo oposto, astros muito pequenos logo perdem todo o seu calor interno e se tornam estéreis. Como parece ser o caso da nossa Lua, ou o que acarretou um posterior fenecimento de Marte. Vênus também é pequeno, mas pela maior proximidade ao Sol ainda se encontra em um estágio anterior ao da Terra . Júpiter e Saturno, estão bem mais distantes do Sol, mas por sua grande dimensão, persistem com o seu fogo interior aceso.

Não haveria acaso para os seres vivos, ao contrário, uma lógica mostra-se no modo como são gerados e se desenvolvem. O que nos permite conjecturar, se toda essa imensurável rede de estrelas e planetas giram agrupados, seguindo movimentos ordenados em uma direção comum, já possuem, em si mesmas, as instruções para fazer nascer a vida. Instruções previamente determinadas por algo que é intrínseco à própria natureza. A orientação é interna. A vida seria produção corriqueira da matéria. Assim como o prado, deixado por si mesmo, logo se torna verde. Se a vida veio a surgir é porque já existia potencialmente, talvez mesmo como o cerne do sistema. A resultante principal de todo esse processo que vem se fazendo. Toda esta movimentação, com galáxias de fogo girando no espaço infinito, a pressuporiam como produto final. Como decorrência natural de um processo existencial complexo e ainda desconhecido para nós em muitos dos seus aspectos. Entre os quais o principal, o que responde a qual a sua finalidade. Se, certamente estamos envolvidos em um processo, para onde segue a existência ? Qual é o significado de tudo isso?

E não podemos contar com a ciência atual para elucidar essa questão. A visão ideológica predominante, o ambiente mental que sustenta a produção científica atual, é materialista. Em razão disto não se concebe que haja intenções na matéria. Não se leva em conta a noção de que há uma vontade natural se exercendo. Não se considera que a matéria contenha vida, e em decorrência: alma. Impossibilitados, por seus muitos conhecimentos, de acreditar na mítica mão de um deus na criação, deixam de ver outra opção, partem para o oposto e pensam que somente lhes resta o acaso. Daí a forte presença da estatística na física atual. Este é um método que se situa no interior de um universo imaginário onde devesse prevalecer o aleatório, a falta de intenção, o acaso.

Mas o que quer dizer acaso? Acontecimentos que não se submetem a nenhum direcionamento, a nenhuma lógica. Em um Universo comandado por leis físicas, químicas, biológicas e psicológicas, determinando praticamente cada mínimo fato, e apesar de submetida a toda esta ordem, a vida iria acontecer por acaso? Não seguindo nenhuma determinação, nenhuma intenção? Difícil para se aceitar. Já se disse que um lance de dados jamais irá abolir o acaso. ( [2]) Mas para o ser vivo, para o ser que se move com uma intenção, os dados estarão sempre viciados. Ou melhor, sempre direcionados a resultados previsíveis. Para o ser que manifesta a vontade, não há acaso. As probabilidades aumentam tanto sob a influência de uma vontade, que perdem significação diante da existência de uma intencionalidade natural. Iremos considerar então que há vontade no átomo, na matéria, e esta se concretiza como uma força natural. Uma força que se impõe sobre os materiais, impõe-se sobre si mesma. Uma vontade poderosa materializa-se por um processo em que vai se transformando. Surgindo, aparentemente, a partir do nada, e tomando direções particulares, em cada uma das formas sob as quais vem se revelar.

Lembro Antonio Gaudí, o arquiteto catalão, pelo que escreveu: “...as diferentes formas com as quais a natureza se apresenta são a manifestação de uma mesma força que permanece oculta.” Sensível como se pede a um artista, ele, o arquiteto genial, enquanto observava o equilíbrio necessário para se erguer catedrais, inspirava-se na complexa engenharia subjacente à construção da mais simples folha. Ou nessa proliferação de gestos, nas várias formas alternativas como troncos se alicerçam na terra, ou se bifurcam em galhos. E como estes troncos, galhos e folhas, explodem nas mais diversas cores, e em milhares de botões em flor, que em seguida serão frutos e depois, mais uma vez: sementes. A semente nascendo para infinitos recomeços de um ciclo, onde tudo se refaz. Para Gaudí seria significativa a intenção que se concretiza nas tonalidades das cores de uma pétala, na estrutura de um fruto, ou nas diversas e criativas performances animais, seus músculos ou ossos. Diante de tão abundantes manifestações, na comovente autenticidade como todos os fatos naturais ocorrem, teria visto a evidência dessa força oculta. Algo como se uma vontade, pela qual toda a matéria se mostra ativa.

Do ponto de vista estritamente material nada há que diferencie um cachorro vivo de um outro que tivesse acabado de morrer. Ambos possuem a boca, os dentes, os mesmos pelos com patas e rabo. Nada falta em nenhum dos dois. No entanto a diferença entre eles é patente. Um está rígido, o outro se move. A vida essencialmente não sendo material, mas uma vibração, um estado a que a matéria conseguiu chegar. Ao estágio quando a matéria manifesta-se como alma. Assim como não vemos o vento mas sabemos que ele está lá, quando se movimentam os ramos, e as folhas, assim também quase dá para se ver a emanação espiritual dessa entidade invisível que habita a matéria viva.

Se alguém tivesse olhos e pudesse olhar para o Universo, de fora, assim como olhamos para o cachorro, veria um ser vivo. Ou o órgão, o tecido, a célula, ou os átomos de um ser vivo. Tudo que é vivo mostra-se possuído por esta vivacidade, que o faz mover-se. O cachorro corre se quer ir mais rápido, deita-se para descansar, balança o rabo se está contente. Pode-se observar esta presença virtual, camuflada no corpo material de cada um desses seres que se movem. Mesmo sendo uma existência virtual, no entanto confere ao seu possuidor, ao mesmo tempo o possuído, a autonomia, de conectar-se a si mesmo por meio dessa vontade que ele assume como sua, e de seguir a direção que, no fundo, seria a própria vontade natural maior que o envolve e da qual é proveniente e parte. Se justificaria que a existência de toda essa movimentação viva, seja realmente uma única força. A tal força oculta. Haveria uma poderosa vontade na origem de toda a explosão de vida que é como se apresenta o meio no qual nós, e tudo mais, brotamos para a existência.

Embora mais visível nos vegetais e animais, com esta agitação que chamamos de vida, antes disso, a vontade natural já revelar-se-ia, materialmente, pelo movimento. Pois cada movimentação tem como causa uma ação qualquer que, empurrando em uma direção determinada, desvela a presença de uma força, pela qual manifesta-se. Desde o âmbito material, a partir do ponto em que se pode observar, de imediato já se pode identificar de onde se origina a força. O fogo, o centro de toda atividade, provocante de toda ação. Fácil acreditar ter sido a partir de onde tudo veio, pois é daí que continua vindo toda a força. A partir da fusão nuclear do hidrogênio, e a conseqüente produção de elementos, cada vez mais pesados, nestas fornalhas de energia que são as estrelas. A matéria em combustão como fonte de calor e de vida. Essa parece ser a base energética do Universo, de onde vem toda a força. E o fogo vai, cada vez mais, concentrar a matéria básica. O que era o gás mais simples e fluído, o hidrogênio, vai ser usinado até ganhar peso e maior consistência material. Estrelas nascem e morrem, e novos elementos engendram-se, enquanto se produz calor dentro do vazio. Uma fogueira, aí está esta fornalha básica. Só assim, por meio destas usinas de força, algo acontece no interior do frio nada.

A segunda força viria do retrocesso, de uma repercussão. A tendência que nasceria em contraposição a aquela grande explosão inicial. Seria mais uma reação do meio que se abala com tamanha vibração. E em seguida, em seqüência, viriam as conseqüentes repercussões posteriores desse choque inicial entre as duas forças principais. Átomos seriam atraídos para formar uma aura de proteção em volta das estrelas que nascem. Algo como se o meio se defendesse do fogo. De modo inverso, mas semelhante, ao que se dá na Terra, com a sua camada de ozônio, que oferece proteção contra radiações cósmicas.

Nos permitiríamos então pensar o espaço, o nada, na sua imensidão infinita, como se assemelhado ao colo de um útero imaterial. Que se contrai ao ser penetrado pelo fogo. E daí emerge a água. Como sempre, da combinação entre átomos de hidrogênio e oxigênio. O hidrogênio, esta matéria básica, naturalmente vindo do fogo da estrela, por sua própria força expletiva. Viria na sua forma simples, originária. Mas como teria se formado o oxigênio? Talvez fosse possível considerar que o meio se constituísse em uma condição qualquer desconhecida. A força da explosão estelar outra, em sentido contraditório. Em última instância, a água também teria sido criada a partir da consistência material vinda do fogo. O átomo de oxigênio se formaria sob exigências do meio, mas com base material no bombardeio de partículas e todo tipo de radiação, vindas da explosão primordial. Em torno desta explosão, uma configuração prevaleceria, como, por exemplo, diferenças de temperatura. O que ensejaria o contraste entre uma desproporcional frieza, em contradição a todo aquele calor. Em suma: uma qualidade preexistente na conformação do espaço vazio recebe as partículas sub-atômicas para, de modo automático, envolvê-las, transformá-las e redirecionar a sua energia; colocando-as a seu serviço. Assim surgiria o oxigênio, modelado com base nesta tendência aqüosa e fria do meio. Para representá-lo. Nascendo para exercer a incumbência de defesa contra o fogo, cada átomo de oxigênio irá anular a força de dois outros átomos de hidrogênio na formação de água. Usa-se a própria força ígnea, que se combate, para fazer nascer o seu oposto. Esta seria o subproduto que nasce na linha de frente de uma batalha, como resultado da resistência efetuada contra uma força avassaladora. Os dois gases: hidrogênio e oxigênio, são reunidos sob altíssima pressão, e eis a água.

Ela nasceria contra e ao mesmo tempo em conjunção com o fogo. Em uma operação conduzida como o resultado de uma reação, à ação que significou a explosão estelar original. Por isso talvez se possa dizer que uma força continuamente quer voltar a ocupar o espaço que havia sido o seu repouso. Como se uma potente mola tivesse sido retesada até ao máximo, e permanentemente quisesse retornar a sua posição anterior. Só não o fazendo porque o calor não deixa. Uma imensidão de espaço gélido força-se contra as áreas de menor densidade, infladas pelo calor que reina a partir de uma chama central. E nessa queda de braços a água se intromete em cada ponto abandonado pelo oponente, cada vez que este relaxa, um mínimo que seja. Após um início caótico, finalmente os dois princípios encontram o equilíbrio. Em obediência a uma engenharia superior, que prevê o momento certo em que as duas potências permanecerão a distâncias adequadas, para que no interior do espaço inflado por esta luta, neste lugar onde se realiza o equilíbrio, dê-se o acontecimento transcendental que é a vida. No sistema estelar em que está situada, a Terra encontra-se suficientemente distante do nosso centro ígneo, permitindo que a água venha para constituir a hidrosfera. Todas estas constatações fazem pensar numa possível pressão fria sobre as chamas de todos os fogos que brilham no céu.

Na Terra se observa a pressão atmosférica, sempre modificada por nuvens(água), que surgem em torno dos focos de calor. Todo dia se repete, assim que nasce o sol. Começa com os ventos formando-se do aquecimento e conseqüente expansão do ar, o que poderia significar dizer que o meio reage ao calor da radiação. O ar quente sobe e se resfria, condensa-se em nuvens, e estas alinham-se em torno daquele ponto visado pelo sol. É como se mais uma vez o calor provocasse uma reação, que vem sob a forma de chuvas. Permanentemente os desdobramentos daquela mesma batalha sem tréguas entre as duas forças. Assim como toda a vida se desenvolve por ciclos, as glaciações que atingiram o planeta, várias vezes, também poderiam ser resultantes das fases em que se dão variações na preponderância de um ou de outro dos dois princípios básicos. Assim como existem movimentos astrais que, na Terra, fazem o inverno ou o verão, a galáxia, que certamente também possui seu centro ígneo, poderia apresentar movimentos, os quais irão induzir aumento de irradiação, ou o seu inverso: as glaciações.

A lógica binária da homeostase, observada no corpo dos animais, seria então universal, aparecendo inicialmente como esta busca de equilíbrio entre um princípio que é o fogo e a resistência oferecida pela água que se formou em contraposição a ele. Uma ação primordial provoca reações, e novas ações vão sendo desencadeadas como respostas que ricocheteiam entre si. Toda manifestação natural existente mostrar-se-ia proveniente da efervescência desse embate. Na Terra, certamente a vida teria tido seus inícios condicionados às chuvas, que ao caírem sobre o planeta, o resfriaram, enquanto escorriam pelas montanhas e reuniam-se nos mares.

Assim torna-se perfeitamente compreensível que elementos básicos tenham se encontrado neste mar e assim também deu-se o faça-se da vida. Todos os componentes estando possuídos por uma ordem orgânica, inerente a um organismo vivo, cuja influência funcional engloba e orienta o processo. De início tivemos o fogo, com a sua força, de imediato contestado pela água, com a mobilidade, a solubilidade e muitas outras qualidades. A isto somam-se as mais diversas características de cada elemento e de cada substância que nasce junto ou em decorrência dessa luta. E sempre, de modo central, a luz. O sol que incide sobre mares, e leva a que estes tornem-se plenos de vida, evidencia-se como a manifestação natural de uma força que foi a origem, e ainda hoje continua sendo o centro e sustento último de toda a vida existente.

O que se vê é que, de modo fundamental, não há uma clara distinção entre a matéria inanimada e esta que está viva. Estão entrelaçadas por uma vontade. Compondo um mesmo sistema inorgânico/orgânico/anímico. Os três modos existenciais mantêm-se em contínua interação entre si, existem unidos, em um sistema uno: O animal, ao mesmo tempo é matéria e é espírito. Uno porque um organismo. Podemos dizer que o fogo, a água, o ar, a terra, constituem um conjunto que produz a vida como resultante de uma vontade natural. Se rigidez fosse sinônimo do que não possui vida, a lava vulcânica, quando se solidificasse, não produziria as terras mais férteis, como acontece. A pedra, ao mesmo tempo que esteve líquida sob o fogo, se resfria, se enrijece, sofre erosão e transforma-se em solo. O cálcio , o magnésio, o potássio, o sódio ou qualquer outra substância de que era formada, são sugados pelas raízes das plantas. Daí passam aos herbívoros e através destes, aos carnívoros. Há uma movimentação contínua entre cada um destes estágios em que a vida se apresenta nessa sua impregnação com a matéria dita inerte. Para manter-se vivo alguém precisa receber todo dia, sem falta, os minerais, inertes, necessários à reprodução das suas células vivas. Qualquer alimento vem, em última instância, daquilo que é cultivado no solo. Continua vindo da pedra. Como não estamos diretamente ligados a essa nossa mãe terra, como os vegetais, todo dia ela precisa passar dentro de nós, difundindo o seu sumo através do nosso sangue e nos alimentando com a vida que contém em si. Basicamente o que comemos continua sendo terra ou luz do sol.

Somados todos os argumentos concluo que não apenas viemos da terra, e que esta foi parte que veio do sol, e além de que este está preso a um conjunto muito mais extenso de uma multidão de outros fogos. De modo direto, ainda é por meio destes centros de energia que continuamos a viver e nos reproduzir no interior do Universo. Sendo vivo o planeta, dele irá nascer vida naturalmente e sem muitas dificuldades. Parece uma boa explicação. Porque o processo não persiste, porque não continua a surgir vida? Simples. Agora, ali nos estuários dos rios, onde estes chegam ao mar, está repleto de vida. E justamente por isto está ali, esperando por alimento. De seres mínimos que formam o plancton, vegetal e animal, aos grandes peixes. As substâncias elementares que descem pelos rios, não mais dispõem de todo aquele imenso tempo para se concentrar. São consumidas imediatamente por miríades de espécies microscópicas que aí se encontram. Chegar a esta constatação ajuda a compreender porque os mangues, onde os rios entram no mar, são as mais férteis regiões marinhas. O fitoplancton absorve os minerais que descem a correnteza e é absorvido por sua vez pelo zooplancton, por peixes, ou outros animais que escolhem estes sítios para botar ovos e reproduzir. Alguns como o salmão, sobem pelos rios em cardumes, para desovar. Este é o lugar onde as espécies se multiplicam, alimentando-se umas das outras. Sucessivamente. Como se esta complexa movimentação repetisse, ainda hoje, todos aqueles primeiros passos da passagem entre o mineral e a vida.



[1] Carlos Drummond de Andrade, em “Confidências do Itabirano”.

[2] Stéphane Mallarmé, Un Coup de dés.