terça-feira, 19 de fevereiro de 2008

Uma tribo pós-moderna

Este texto foi baseado em anotações que fazem parte do projetado terceiro volume da trilogia

Uma tribo pós-moderna

Tomemos aleatoriamente uma afirmação do autor , Paul Karlson, quando tenta nos explicar o fundamento dos números complexos, ou bi-dimensionais: Paul Karlson, A magia dos números, Editora Globo, Porto Alegre, RS. Página 591

“Os pares numéricos derivam dos números antigos, e podem, mediante uma escolha adequada, uma restrição, reduzir-se novamente aos números unidimensionais, da mesma maneira que um circunspecto pai de família, encontrando por acaso os antigos companheiros da mocidade, pode voltar a portar-se “como nos tempos idos””.

Karlson trata de matemática, mas não vamos seguí-lo nesta direção, e sim nesta outra, em que ele graceja quanto ao desejo de alguém em sentir-se jovem. Passa por nossa cabeça a insatisfação com uma certa inconseqüência do autor, já que não se concebe que sendo a juventude algo extremamente agradável a todos, se possa abandonar este estilo de ser, deliberadamente, simplesmente em razão de uma convenção social que assim exige.

A brincadeira de Paul Karlson nos lembra o filme, “Husbands” de John Cassavetes, diretor que se tornou conhecido por uma espécie de dissidência com respeito a Hollywood, sendo ali o mais comum o trabalho em equipe, submetida a um certo direcionamento comercial quanto à a feitura dos filmes, enquanto ele fazia filmes de autor, como os grandes mestres, do auge do cinema.

Neste filme Cassavetes apresenta um grupo de amigos, do tempo da escola. E que se reencontram e tentam, sem o conseguir, refazer os programas e as atitudes de quando todos eram jovens. E agora, casados estão apáticos e sentimentais, mas tudo isto apenas para falar de uma certa preguiça, que nos faz acomodar e deixar que a rotina nos domine. Aparece claramente uma crítica ao modelo de vida atual. Principalmente à família, mostrada como uma prisão para o homem.

Enfoca a submissão a costumes que não se critica adequadamente. E é assim que estes amigos que se encontram, já quando adultos, merecem sim os gracejos do mestre da matemática. Mostram-se alquebrados, amargurados, todos comprometidos com os mais diversos afazeres, não possuem a liberdade, não se arriscam, geralmente estão gordos pela inatividade gerada por rotinas massacrantes.

O fato é que aceitamos uma convenção que nos retira a juventude. E se alguém disser que a juventude é algo derivado da natureza e está condicionada pelo tempo, vê-se imediatamente que não é assim. Ela é muito mais resultado de convenções, restringida por costumes, por uma tradição apenas. Como no exemplo acima, vê-se que há sempre o desejo de retomar a juventude, mesmo que seja apenas em um final de semana com os amigos. O que era próprio da juventude? A fraternidade, o descompromisso, a alegria de viver. E isto não necessariamente deveria desaparecer nas outras faixas etárias.

Portanto a felicidade não é uma questão de idade. A pessoa não só quer expressar-se livremente, mas ver reconhecida a sua expressão, lança-se com o seu desejo na direção do outro e tem prazer se recebe atenção e compreensão. Se há comunicação genuína, aí tudo se aquieta e está completa a relação. Este , talvez, seja o principal prazer de viver. Mesmo se entre amigos, se entre amantes, entre pais e filhos, dentro de um círculo não muito extenso das pessoas entre as quais se vive, ou mesmo entre estranhos, pois, muitas vezes é aí que acontece um dos prazeres mais significativos, este de encontrar um desconhecido pelo qual se sente simpatia. Prazer em conhecer.

É preciso ver que os empecilhos a uma vida plena são estruturais. O modelo atual, com a família centralizando essa função de conceder o reconhecimento, de providenciar o aconchego espiritual que alguém requer ao adentrar a existência, reduz, de modo fundamental, o círculo afetivo da pessoa. O modelo familial tradicional foi destruído com a urbanização. O que prevalece no momento sustenta-se na família nuclear, o casal. Isto conduz a uma identidade que se forma quase que exclusivamente do contato com os pais, resultando em uma afetividade centrípeta, presa ao âmbito restrito da vida do casal. Este modelo favorece o individualismo. A pessoa se coloca contra o mundo. Competitivo, agressivo. O individualismo está na raiz de todo o desencontro sócio-cultural da atualidade.

Quanto à distribuição de afeto, as aldeias, ou mesmo as pequenas cidades, ainda mostram a prevalência de uma maior identificação entre os seus habitantes. Mas nas grandes cidades instaura-se outro sistema de distribuição de afetos. O grau de comunicação submete-se a uma formalização, a maior formalização permite maior controle para realizar a cerimônia social mas isto se mostra falho. Assim é que paradoxalmente quanto mais verbalização pode acontecer menor grau de entendimento. Realizam-se muitos contatos, supondo-se que mais superficiais, resulta em baixo nível de comunicação. A já citada multidão solitária. (The lonely crowd, David Riesman, 1950)

O mundo, dito moderno, é principalmente um mundo urbano. Prevalecem as normas formais de relacionamento. As pessoas podem trocar cumprimentos, trocam signos, se comunicam racionalmente mas para trocar afetos organizam-se segundo normas próprias do meio urbano. O difícil relacionamento de desconhecidos somente ocorre por meio de uma mais complexa formalização dos modos de conduta. Ao menor aprofundamento interpessoal supre-se com uma maior complexidade das convenções.

Queremos pensar a alternativa de vivermos uma outra experiência. Poderíamos projetar um sistema onde a célula básica seria formada por uma `família` múltipla. Com diversos amigos morando em condomínios (Diversas casas ou prédios de apartamentos, com as construções planejadas para o novo estilo de convivência comum.) Isto possibilitaria unificar despesas, facilitar logísticas voltadas para alimentação, o transporte pessoal, compras, e muitas outras oportunidades. E, principalmente, facilitaria a introdução desse outro sistema familiar. Onde os filhos seriam criados em comum. Uma espécie de tribo integrada ao meio urbano.

Neste novo modelo de sociedade a pessoa já irá nascer no ambiente social. Não apenas se identifica com os pais, mas com todos os parentes e até mesmo com aqueles que não fazem parte da sua família. Um novo modelo tribal de existir. Mas não se trata de retorno, mas avançar a um modelo que nunca foi tentado antes.

O coração desse sistema teria que ser um conselho, onde as decisões seriam tomadas de modo coletivo. Ele administraria um fundo destinado a prover todas as despesas. Uma garantia de que todas as providências sejam cumpridas. Por exemplo: Que as crianças recebam assistência, mesmo não estando presentes os pais biológicos.

O principal objetivo será abrir os círculos afetivos, sob os quais se forma uma pessoa, rompendo com o casamento monogâmico como central nessa função. Sem que se deixe perder a eficácia operacional que este tem apresentado, (mal ou bem tem sido o sistema usado até hoje). A mudança somente tem sentido se significar aperfeiçoamento ainda maior em eficácia. A educação das crianças poderá ser excelente, desde que se desenvolva um sistema funcional para a convivência entre muitos irmãos.

Um previsível avanço existencial, se passássemos a ver que em verdade alguém cresceria enormemente em sua concepção do que significa o ambiente social. Onde cada um se olharia como parte do coletivo, considerar a si mesmo como pai, ou irmão, mãe, etc., de toda criança que necessita de assistência. Este seria o modelo de homem que cresceu afetivamente, o homem que pode ser amante de muitas mulheres. Porque ele consegue conviver com mulheres que também vão amar muitos homens. (O que significa uma profunda mudança no caráter afetivo do sujeito).

É preciso deixar claro que não se busca a orgia. Toda vez que se fala em liberdade sexual se pensa imediatamente em desregramentos e coisas afins. Acreditamos que o pudor é um sentimento natural, e cada um saberá definir o que deseja, mesmo que não lhe sejam cobradas as restrições, quem o faz é a própria pessoa madura. Ter a liberdade para buscar o equilíbrio que existe em ser livre, não para nos perdermos com relacionamentos inconseqüentes, o desejo sim, mas o respeito às pessoas, a seu intelecto e preferências pessoais. Isto é o que um homem e uma mulher livres podem esperar um do outro. Só há esta possibilidade se acontecer algum grau de amadurecimento cultural.

Os tropeços provocados pela exaltação dos movimentos feministas e a chamada revolução sexual acontecida entre 60 e os 70s, necessariamente devem ter trazido alguma experiência. Será possível saber onde se errou. Mas principalmente constatar que não dá para recuar ao que havia antes. Ao casamento monogâmico. É preciso escapar desse lugar fechado que é o casal. Fechado como se dois intrigantes, o machismo de um alguém , secundado por sua posse, a mulher, os dois contra o mundo, e os filhos sofrendo o medo do mundo que vem desse isolamento dos pais. No fundo o casal se esconde do mundo. Um modelo próprio de um tempo quando o sexo ainda era visto com muitas restrições e proibições.

Não seriam descartados totalmente os casamentos monogâmicos. Mas, embora este modelo também possa ser usado, a vanguarda seria oferecer a vida de solteiro sexual, a homens e mulheres que embora venham a possuir filhos, disporão de condições excelentes para criá-los, sem abrir mão da condição de liberdade. E a despeito das necessárias responsabilidades, manterem-se como pessoas livres, do ponto de vista dos seus relacionamentos sentimentais e sexuais. Haveria mais energia circulando em um meio que siga este modelo de relações afetivas. Entre o afetivo e o social não iria existir uma defasagem.

Nem também se pretende impedir a privacidade (Cada adulto teria o seu apartamento particular, suas coisas particulares. E quanto a aquela afinidade, entre homem e mulher, a que se acontece mostra-se perfeita, isto que se convencionou chamar amor. Até aí, nenhuma culpa. Estão assim concentrados, alheados, por que subiram ao céu. Mas um casal assim poderá conviver tranquilamente em qualquer sociedade. Nem seria preciso dizer o obvio, que não pode haver dogmas, como este de se obrigar alguém a mais de um parceiro sexual. Qualquer preferência tem que ser respeitada. E o que se pretende projeto de aperfeiçoamento de costumes, não admitiria atitudes autoritárias. É com o conhecimento entre si que se forma a tribo, espera-se que todos saibam com quem estão lidando.

Cada tribo irá elaborar as regras para que alguém seja incorporado, ou eventualmente, também excluído. Muitas perguntas irão surgir com certeza. Como lidar com os afetos provenientes do ambiente externo à tribo. Com certeza muitas outras questões terão de ser pensadas, e tudo equacionado.

As crianças sempre teriam a assistência de pais, os seus próprios, ou os adotivos, presentes sempre, mas se admitiria a contratação de serviço especializado em casos especiais. O ideal é que a tribo se forme antes de construir a moradia.

Pense nas mudanças quanto à construção das novas moradias, onde se teria de prever espaços adequados para creche, biblioteca, salas de jogos e outros ambientes de uso coletivo, a serem definidos por cada tribo.

Do ponto de vista econômico basta uma comparação imediata para se perceber as vantagens: quantos fogões serão eliminados em favor de um cozinha e refeitório de uso comum. Quantas máquinas de lavar seriam transformadas numa lavanderia única, televisores se agrupam em salas multimídia de uso comum? O benefício em termos de utilização dos espaços, a economia direta com um sistema de compras e de transportes unificado.

Nem é preciso dizer da adequação dessas idéias a um mundo que certamente vai ter que encontrar meios de reduzir o desperdício. O futuro exige algo assim. Mas o ganho capital seria o significado em termos de troca afetiva.

Os novos seres ao virem para a existência não mais se voltariam para se identificar com o pai, ou a mãe, para formar, juntos, o casulo individualista. Agora o ser é convidado a se abrir para o mundo. Nasce já no interior da sociedade. Os afetos que consolidarão o grau de felicidade de uma geração serão a garantia de solidez dessa nova sociedade.

Desde os primeiros relacionamentos de amizade ou namoro que os jovens poderiam começar a idealizar a sua tribo, convidando os que são simpáticos , reunindo-se e discutindo vida em comum. Ao final dos estudos, quando normalmente os jovens irão deixar os pais, ele já estaria incorporado a uma tribo. As escolas iriam auxiliar nesse sentido. Naturalmente os jovens já demonstram uma tendência semelhante. Realizando experiências fazendo viagens juntos, organizando finanças do grupo, fiscalizando as ações e definindo regras para discussão dos problemas. Não mais de modo egocêntrico como noivo e noiva faziam e fazem ainda ao planejar a sua vida.

Cada tribo prepararia seus filhos para construírem a sua própria comunidade, desde cedo. Incentivariam discussões de como seria a nova tribo, a poupança de recursos, e mais do que isto, todos os passos no sentido a modificar a vida, e conseguir mais felicidade pessoal, mais significados, mais afeto.

A maior importância, o que há de mais central, seria a nova perspectiva que tudo isto provocaria. Alguém já vai nascer no ambiente social. Possivelmente no futuro todos irão nascer no ambiente social, a privacidade será um assunto particular, de homens e mulheres livres que quando querem podem se isolar ou não.

Será exigido de cada um muito crescimento espiritual, muita capacidade de diálogo. Largar os seus conceitos individualistas e aceitar-se com membro de uma comunidade, com responsabilidades maiores. Este novo homem vai se interessar mais pelo planejamento dos nascimentos, com certeza um dos principais itens a ser discutido pela tribo organizada e futurista. Pois ele vai ser pai de muitos filhos, vai se interessar, não somente por seu próprio orçamento, mas pelo de todos. Este sentimento do nosso, pode contaminar a toda a sociedade. E quem sabe daí, que desapareçam de nossas ruas, as crianças abandonadas que um sistema familiar vigente permite.

Como nos ensinava acima, Paul Karlson, o homem pode abstrair, criar números imaginários que acabam tendo aplicações que vão além do habitual, mas na sua vida ordinária, aquilo que deveria ser a parte mais importante de uma existência, que se sabe passageira, a isto fecha-se os olhos e aceita-se a tradição escravizadora, massacrante, e da qual se excluiu totalmente o prazer. Naquilo que é talvez mais importante, não nos arriscamos a inventar.

Pois do mesmo modo como um matemático abstrai e cria uma entidade arbitrária a partir de algarismos já conhecidos, fazendo nascer uma nova classe de números com inusitadas propriedades, e utilidades práticas, se poderia abstrair dos costumes conhecidos para imaginar uma realidade social outra. Mais aperfeiçoada pela capacidade de imaginação, mas imaginação sustentada na racionalidade, como esta que orienta o experimento científico.

De qualquer modo fica aqui a idéia, certamente precisará ser aperfeiçoada. Com a certeza de que a história não parou, e enquanto permanecerem todas as dificuldades que se vêm atualmente, não vai parar. Parece que está implícito no destino humano a obrigação de construir um futuro melhor.

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